domingo, 13 de janeiro de 2013

Um tempo redondo para a narrativa transcontinental de Mia Couto




Julio Roitberg, 06/01/2012

Diz Roland Barthes, em S/Z (1970) que “há por um lado, o que é possível escrever e, por outro, o que já não é possível escrever: o que está na prática do escritor e o que se afastou dela.” (p. 12). Aquilo que criou significação para Mia Couto, fugindo a toda possibilidade de leitura viciada, arquivada em nosso “museu do imaginário”, entre tantas metáforas petrificadas, é o material, ardente de vida, deste  seu livro. A matéria de que lança mão é o  “escrevível”. Questiona, implica, evoca, invoca e, finalmente, convoca, falando, com toda propriedade, atestada, tanto, pelo reconhecimento do conjunto de sua obra, assim como por uma escritura que se apresenta em uma sintaxe direta, lógica e gostosa de ser lida.
Em “E se Obama fosse africano?”, as memórias e as lembranças fundem-se naquilo que o autor nomeou por “interinvenções”, neologismo que congrega intervenções e invenções realizadas em diversos momentos e lugares fluindo em uma temporalidade mítica. Suas narrativas, mescladas à prosa poética - “ensaios”  - dão suporte a um conjunto de textos que deambulam, rosianamente, na “terceira margem”, ao mesmo tempo, em que não se afasta da prática, da proposta de uma intervenção social.
Em “Os sete sapatos sujos” (p. 25-47),  denuncia a vitimização, o coitadismo, a inércia, a esquecimento voluntário, a justificativa pelas ações dos outros, a culpabilização através do destino, a atávica presença das forças ocultas e da magia, questionando “o que  preciso mudar dentro e fora de África? (p. 27), a fim de  não continuar a atirar poeira para ocultar responsabilidades”.
Os “sete sapatos” -, cujo abandono na soleira da porta mostra-se imperioso, em função dos novos tempos, para que se possa entrar neste futuro que todos querem, descalços de preconceitos, são enumerados e sequenciados, assim: Primeiro sapato: a ideia de que os culpados são sempre os outros e nós somos sempre vítimas; Segundo sapato: a ideia de que o sucesso não nasce do trabalho; Terceiro sapato: o preconceito de quem critica é um inimigo; Quarto sapato: a ideia de que mudar as palavras muda a realidade; Quinto sapato: a vergonha de ser pobre e o culto das aparências; Sexto sapato: a passividade perante a injustiça; Sétimo sapato: a ideia de que para sermos  modernos temos que imitar os outros
Impregnando – e mesclando – a poética brechiana com o convite a uma prática que leve à emancipação, em consonância com o nosso maior educador, a leitura cinematográfica deste livro projeta-se - e lança o leitor!- em uma tela, por meio das “conversas”. E é este andamento conversacional que balança a viagem entre as narrativas. Este “saber-fazer”, “saber-dizer”, “saber-ouvir” (LEAL, 2006, p. 25), enquanto modo de escrituração, traduz, atualiza, exatamente porque suas representações assemelham-se mais à contação de estórias, abrindo larga distância das narrativas lineares, enrijecidas na linearidade do espaço e do tempo. Para ouvir Mia Couto e suas narrativas transcontinentais, bem além das suas Áfricas, pede-se um tempo redondo, bem mais largo que este que nos obriga a cessar a leitura, a esquecer das lembranças, a interromper a conversa. Porque o dia amanhece.
Para Leal (2006), citando Lyotard (1993)
Os relatos trazem uma “função letal”: nessa mistura, tempos são apagados, perdidos, mesmos porque toda narrativa existente, contada, é sempre presente, atual. Com isso, funda-se pragmaticamente, [...] uma temporalidade simultaneamente “evanescente” e “imemorial”, constituída no “ato presente que desdobra, cada vez, na temporalidade efêmera que se estende entre o eu ouvi dizer e vocês vão ouvir”. (LEAL, 2006. p. 25)
Incendiando o horizonte além da fronteira transcontinental: das savanas africanas para o mundo – com um recorte especial para o Brasil de Jorge Amado e de Guimarães Rosa -,  possibilita, em sua prosa conversasional, uma viagem entre o épico, o lírico e o dramático (STAIGER, 1975), abrindo as trilhas de acesso às eternas lembranças.
Este deslocamento espaço-temporal, entre os gêneros poéticos, acompanha a compreensão de Mia Couto sobre as línguas, “[...] as mais poderosas agências de viagens, os mais antigos e eficazes veículos de trocas” (p. 174), o que é ilustrado em “O incendiador de caminhos”: todos nós já conhecemos os mais diversos lugares e paisagens, independente de termos embarcado em um avião e, rapidamente, estarmos em um outro continente.
Não existe geografia que nos seja exterior. Os lugares – por mais que nos sejam desconhecidos – já nos chegam vestidos com as nossas projecções imaginárias. O mundo já não vive fora de uma mapa, não vive fora da nossa cartografia interior. (p. 74)        
Dos mais remotos desertos, às mais impenetráveis florestas, anteriormente transpostos e povoados pela imaginação de nossos antepassados que, “antes de chegarem ao destino faziam deslocar a sua imaginação coletiva.” (p. 74), “mesmo parados, partimos à procura do que não podemos ser.” (p. 76).
Escultura Ujaama, Makonde, em eboni, 25” (Tanzânia, 1900-1925)
O acesso à zona de embarque – sem a necessidade do check in é permitido/facilitado pelo exercício da escrita, da escuta e da leitura, atos que não se restringem ao que se pretende por hegemônico. Lemos, escutamos, escrevemos bem mais com outros códigos, além dos preponderantes. Os sinais deixados nas cavernas pelos nossos ancestrais que, em nossa genética, carregamos,  esculpiram nossas memórias, através dos tempos.

Jogando com a realidade e a mímesis, assume que “a realidade é uma construção social e é, frequentemente, demasiado real para ser verdadeira.” Em função desta armadilha, “nós não temos sempre que a levar tão a sério.” (p. 99)
E este tempo não linear, “redondo” (p. 123), africano, fabular, narrativo, longe da racionalidade cronológica, pode ser que tenha a ver com a capacidade, segundo o autor, de, ao atualizarmos nossas narrativas, presentificando-as, inventarmos os nossos cotidianos. Mia Couto escreve de um lugar em que as ideias de pessoa, de individualidade são bem diversas nas línguas do Sul da África (p. 80-81). Para Leal (2006) a estrutura narrativa “só tem sentido quando em relação a um contexto, entendido tanto como uma realidade cultural, um repertório de textos e gênero e a um processo comunicacional específico.” (p. 26). E, nas culturas das diversas Áfricas, cenário-processo-personagem do livro de Mia Couto:
Nós somos como uma escultura maconde[1] uja-ama[2], somos um ramo dessa grande  árvore que nos dá corpo e nos dá sombra. Distintamente daquilo que é hoje dominante na Europa, nós olhamos a sociedade moderna como uma teia de relações familiares alargadas.” (p. 82).
Bibliografia

BARTHES, R., avaliação. In: BARTHES, R. S/Z. Lisboa: Edições 70. 1970. p.11-12.
COUTO, M. E se Obama fosse africana? (ensaios). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
LEAL, B. Saber das narrativas: narrar. In: GUIMARÃES, C.; FRANÇA, V. (Orgs.) Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: autêntica, 2006. p. 19-42.
STAIGER, E. Da fundamentação dos gêneros poéticos. In: STAIGER, E. Conceitos fundamentais de poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. p. 160-179.



[1] Povo do norte de Moçambique
[2] “Família alargada.” Por extensão, denomina um tipo de escultura em que figuras várias se aglomeram de forma entrelaçada simbolizando a unidade familiar.” Reprodução em escultura em http://crocolux.com.Art Acesso em 06/01/2012