quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Dá pra ir de bicicleta, mãe?!

A vida simplesmente encanta. E apronta! Imagina o que é você reencontrar uma filha, de quem você não tivesse a menor notícia dela durante dezoito anos, não alimentando a menor esperança de um dia saber algo a respeito, aparecer na tua frente, te abraçar e te chamar de pai! E não acaba aí, não: abraçado àquele corpo, não mais de criança, você sentir outro abraço, um pouco mais leve, de um pequenininho  te chamando de vovô. E isto aos sessenta anos de idade!

Tá bom pra começar?! Foi assim: 
Antes de nos mudarmos pra Angra dos Reis, na virada do século, levamos conosco uma menina de um abrigo em que prestávamos serviços voluntários.  A mãe a havia deixado pra adoção, junto com as duas irmãs, num abrigo e não foi nada difícil nos apaixonarmos por aquela pequenininha, magrela, curiosa, marrenta, de cabelos curtos e cacheados. 

Nos mudamos e lá, em Angra, matriculamos a pequena numa escola municipal e seguimos a vida. Eu a levava de bicicleta pra escola e,  com a sua outra mãe,  brincávamos bastante além de seguirmos com a educação dela e os cuidados que uma criança precisa receber. Ana montou um atelier de cerâmica e fazia transporte escolar dirigindo uma kombi pra ajudar na despesa. Eu dava aula numa faculdade e no colégio naval. Assim, fomos vivendo com pouco dinheiro, devido ao desemprego estrutural - e  sistêmico - à época,  muita alegria e esperanças, principalmente, de um dia, registrarmos a Suelen no nosso nome. 

Passado um bom tempo com a gente, um dia, ela falou assim: “mãe, quanto tempo eu levo pra chegar em Sepetiba de bicicleta?”. Sua tia e mãe biológica morava naquele bairro, da zona oeste carioca. Nos apavoramos com a possibilidade de aquela criança, um dia, por conta própria e sem que nos nos déssemos conta, simplesmente, 

de
     sa 
          pa
               re
                    ce
                         sse 

no mundo. 

Entramos em desespero e em contado com o pessoal do abrigo porque entendemos ser melhor levar a criança de volta. Trouxemos a Suelen  de volta para o Rio. Tristes, voltamos a nossa vida sem a nossa filha por perto. Em Angra, sozinhos, literalmente, no meio do mato, sem amigos ou parentes, com nossa condição financeira depauperada, sem carro – já que precisamos vendê-lo – nos isolamos dos nossos conhecidos e familiares, por um bom tempo. 

Pior: além da telefonia de longa distância ser péssima na época, ela era muito cara e não tinha as facilidades da internet de hoje. Tomada por uma depressão profunda, Ana resolve voltar para o Rio e passa a procurar uma casa pra gente se mudar enquanto eu fico, sozinho, em Angra, tentando vender a casa que construímos. 

Voltamos pro Rio e retomamos nossa vida dentro das possibilidades de um casamento sem filh@s humanos, porém, com nossos gatinhos e cachorros que aprendemos a amar e trouxemos conosco. Por causa de uma infertilidade da minha parte, não havia conseguido gerar uma criança com a mulher que eu amo o que, com o tempo, passou a ser a tônica destes altos e baixos pelas quais passamos e temos passado nestes quase vinte e cinco anos de convívio, somados a outros fatores, claro! 

E aí, contribui o Destino com os seus sortilégios, como diria Machado de Assis: há oito anos, veio morar em nossa rua, numa casa bem próxima, uma família com uma menininha que nos adotou como “segunda mãe e segundo pai” dela: a Julia Robert. Vida que segue, agora, com o carinho desta pequena, que vai fazer agora onze anos, que todos os dias, antes de ir pra escola, cedinho, manda uma mensagem de amor dizendo que nos ama, pedindo a bênção. 

Tem mais: em um momento em que estamos vivendo o olho de um furação no Rio de Janeiro, em se tratando do quadro caótico em que nos encontramos, com o salário dos servidores públicos atrasados e sem a menor previsão de melhoria, Ana Paula tentando concluir sua monografia de conclusão de curso e eu precisando escrever o projeto pra qualificação no doutorado, vivendo uma de nossas maiores crises no casamento, ressurge a Fênix. 

Deus joga dados com o universo, sim! 

O universo conspira junto ao Caos. 

Deusas e Deuses, jocosos, brincam e zombam dos mortais. 

A Daniele, minha cunhada, chega e diz assim: sabe quem eu encontrei na creche do Davi?!.............................


É que o Arthur, meu neto (isto mesmo: MEU NETO), de 3 aninhos, ligado no 220v, bem magrinho, tipo a mãe quando criança, estuda exatamente na mesma creche que o meu afilhado, Davi. E isto, dezoito anos depois de ela ter “fugido pra namorar”, como ela pediu contar esta história. Agora, de dois com seus cachorros e gatos, ficamos com um neto e duas filhas. 

Suelen é uma mulher guerreira que soube, passados dezoito anos, "sempre pensando na gente" , desenvolver autonomia, esperteza, inteligência e sagacidade.  Começou a trabalhar bem cedo, com seus onze anos e jamais teve a aceitação de sua mãe que, segundo ela, deu uma surra nela, quando ela voltou dizendo que ela não tinha nada que ter fugido da gente. Mas, se não fora isto, como ela poderia ter tido todas as condições que a levaram a ser protagonista ainda bem criança?! A vida é uma escola que suplanta, em muito todas as outras escolas. 

Amamos demais e, por isto, não deixaríamos aquela criança passar necessidades físicas ou emocionais. Quando ela não está trabalhando, ela vem nos ver, trazendo o nosso netinho na cadeirinha de sua bicicleta e ele adora brincar no quarto dos brinquedos. Um dia destes, fez o almoço pra mãe, que é vegetariana. Uma delícia de estrogobofe (como ela disse) de abobrinha. Ana até jantou rs. E, mesmo nos dias em que ela trabalha, fala conosco de manhã e de noite. É uma outra fase de nossas vidas simplesmente apaixonante e estamos surpresos com tudo isto que está acontecendo conosco. 

Toda hora me lembro de uma frase da Clarice Lispector em que ela diz que “a vida não é um mistério a ser explicado e, sim, um milagre a ser vivido”. O delgado fio de areia da ampulheta caindo, sem parar, revela o que faz sentido na vida, o que merece e tem que ser vivido com toda a potência: o momento presente, que é o que existe.

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