Não tenho o hábito de me lembrar de sonhos, apesar de que, há algum tempo, até mesmo mantinha um bloco na mesa de cabeceira da minha cama para o registro de alguma possibilidade surgir e não perder alguma palavra que, mais tarde, me ajudasse a me lembrar.
Mas, como sei que os sonhos, se levados a sério e analisados, podem ser ótimos aliados para o autoconhecimento, ainda mais, num momento dramático que tanto eu como toda humanidade tem vivenciado com a pandemia.
Não fui dormir muito tarde, depois de colocar o José na cama do seu quarto e beber um copo d'água e, não levei muito tempo, como de costume, pra dormir, ainda mais, porque a temperatura estava super agradável, com uma chuvinha fina deliciosa - claro, pra quem tem condições de ter um abrigo confortável!
Dormi direto, sem acordar pra ir ao banheiro e, lá para as 6hs da manhã, comecei a acordar devido às imagens, ainda bem fortes do sonho que eu tive, mas, lutei por continuar na cama para aproveitar esta manhã chuvosa de domingo e, assim consegui permanecer deitado por mais alguns momentos. Durante alguns minutos, me esforcei pra recolher o máximo de informações do sonho, antes que a lembrança se apagasse por completo, antes de eu de abrir os olhos.
Do que me lembro, eu estava em uma situação perigosa, no telhado do alto de um prédio, tentando uma solução segura, pois, havia um vão entre o lugar onde eu estava - o beiral do telhado do prédio e o do outro do próximo - que me permitiria sair daquela situação.
O desafio não era tão simples de ser vencido, assim como o obstáculo de ser ultrapassado: é que, para que eu equacionasse tudo aquilo, teria que me segurar numa corda, subir um pouco mais, até alcançar a outra parede que parecia bem comprometida.
Apesar de não ser atleta, não vi grandes dificuldades, pois, quem havia tentado antes de mim, não encontrara grandes dificuldades e tenho mantido com uma certa dose de cuidado e carinho o meu corpo e minha saúde integral.
Antes da minha vez, um rapaz passou na minha frente, e, ao invés de deixar a corda exatamente no mesmo lugar, como todos estavam fazendo, propositadamente, ou não, o peso dele fez com que a corda cedesse obrigando tanto ele quanto a próxima pessoa - que seria eu! - a pensar nalguma alternativa. Se não impossível de chegar ao outro prédio, a situação ficou bem mais complicada!
De estatura maior que a minha, ao invés de fazer como todos os que foram na nossa frente, não se arriscou e, simplesmente, desceu pela corda até um ponto da parede, onde havia apoios seguros e suficientes que permitiram a ele chegar, em segurança, até o chão.
Ele me deixou a corda e um dilema. Tentaria, agora, alguma nova solução para chegar ao outro prédio, ou desceria, e, depois de, rapidamente, pesar os riscos, em descer, também. Como a questão era sobreviver, então, eu também desci, chegando são e salvo no chão, caminhando, apressadamente, para a saída, para a rua.
No dia 16 de março de 2020, deixei o colégio onde dou aulas e, trabalhando em casa, de lá pra cá, poucas foram as vezes que saí de casa e, seguramente, nos três primeiros meses, me mantive isolado, com minha companheira, filho, cachorros e uma gata aqui dentro da nossa casa, já que o meu trabalho.
Até hoje, quando não se trata de uma urgência, resolvo pelo telefone. Infelizmente, um direito a vida partilhado por que poucas pessoas, isentando, claro, aquelas que, por opção, vontade e desejo, arriscam suas vidas e a nossa.
Dentre o que teria que administrar num tempo que eu não saberia dimensionar sua extensão, fiz uma agenda de filmes por assistir e, claro, dentre os clássicos, não poderia deixar passar o Asas do desejo, de Wim Wenders (1987), drama romântico-fantástico, franco-alemão, com roteiro de Peter Handke, Richard Reitinger e do próprio diretor.
No cenário de uma Berlim, depois da 2ª Guerra Mundial, os anjos Damiel e Cassiel vagueiam pela cidade, invisíveis às pessoas, lendo o que elas pensam e, de alguma forma, tentando dar um pouco de conforto às almas vazias dos mortais. Nestas tentativas, um dos anjos se apaixona por uma trapezista , (Soveig Dommartin), o que o faz desejar abrir mão de sua imortalidade angelical, a fim de se tornar humano e experimentar todas as dores e alegrias do cotidiano dos mortais.
Não sei o motivo, mas, de todas as cenas que me chamaram a atenção, até hoje, uma cisma em reaparecer que é aquela em que o anjo Damiel, encostando-se num rapaz, que se encontra no parapeito do alto de um edifício, com fones de ouvido. Afastando-se abruptamente, o moço se atira para baixo.
Se achar legal, antes de continuar lendo o que eu escrevi, clique aqui e assista um pouquinho, pois, numa de suas belas das cenas, Asas do desejo (Alemanha, 2018), todo filmado em preto e branco, na biblioteca de Berlim, o personagem Damiel (Bruno Ganz) se inclina sobre um leitor que lê um dos versos do livro da Gênesis: "Ha'Aretz haita tohu-va-vohu que, em hebraico, diz, basicamente: a terra estava em caos,
Ousando as aproximações, ainda que descabidas - e eu assumo! - num cenário , com mais de 480 mil mortos, o Brasil, junto com a terra, se vê devassada, me fazendo recorrer à tradução permito relativizar a validade do grafite que aparece no filme, uma hora e pouca do começo, atrás de um carrinho de comida, onde Peter Falk cumprimenta o anjo, dizendo "wer bunker baut wirft boben", traduzido por "aqueles que constroem búnquers jogam bombas".
O prédio do meu sonho estava em ruínas e eu precisava urgentemente sair dali. Mas, as possibilidades de saída não eram promissoras, devido ao grande risco. Permanecer isolado tem-se traduzido em tremendos prejuízos sociais e emocionais ainda que para uma ínfima parcela da população (menos de 2% dos brasileiros). O risco do contágio, aqui no Rio de Janeiro, continua alarmante.
Quem deveria se responsabilizar pela nossa proteção com as vacinas se mostra como o maior inimigo além do vírus: o presidente da república com todas as ações, não só comprovadas pelo número de mortos, como, também, pelas investigações e provas apresentadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid, em andamento, ainda que os seus poucos - mas barulhentos! - apoiadores se neguem a enxergar sua clara intenção que usa uma facção do exército, acusado em julho de 2020, pelo juiz Gilmar Mendes, de genocida, para cumprir a missão.
E isto, não só com o próprio exemplo, como, também, com o negacionismo, obstáculos à uma ampla campanha de vacinação, estímulo às aglomerações, a que se juntam suas tentativas em desobrigar o uso de máscaras, o estímulo ao tratamento precoce com medicamentos sem comprovada eficácia e tudo aquilo que favoreça a "imunização de rebanho", objetivo final rumo ao país ser o detentor do maior número de mortos e infectados pelo vírus da Covid 19 e suas variantes.
Quem deveria construir abrigos persiste na atitude genocida de jogar bombas. Com a missão cumprida, seu ex ministro da saúde, Pazuello, general de três estrelas, "experiente em logística", segundo o seu antecessor, que se negou a prescrever a cloroquina, bem o sabe: qualquer gestor, com a menor capacitação que fosse, ainda que de pouca experiência, poderia ter gerenciado a crise em Manaus, evitando, assim, privar pacientes graves dos cilindros de oxigênio. Mas, assim como no quartel, segundo ele, "um manda e o outro obedece".
No trapézio da vida, também há o que se decidir, mas, algumas pessoas, por opção, abrem mão deste direito. Infelizmente, os pacientes, em Manaus, não puderam decidir, no seu fino fio da vida que lhes restava. O general cortou-lhes a chance.
Sim, a vida é feita de escolhas: no meu sonho, eu bem poderia ter optado por permanecer no primeiro prédio e tentar outras possibilidades. Mas, a solução mais prática, rápida e eficiente se apresentou à minha frente e não declinei ao aceitar o desafio: era só me segurar, por poucos segundos, numa corda e transpassar o obstáculo!
Um anjo surge junto a crises intempestivas, sem aviso prévio. Pode não ser como a linda atriz do filme, Solveig Dommartin, bailarina e acrobata circense, ou, ainda, o meu filho, José, a me alertar que nem todos os anjos tem asas, e, às vezes, passando pele gente, tem apenas o dom de nos fazer sorrir.
Outros, como o rapaz do meu sonho, à minha frente impôs, de maneira torta como o de Carlos Drummond, um novo desafio, que, equacionado rápida e racionalmente, me fez decidir pelo que entendi como eficaz indubitavelmente, como pelo distanciamento social, o uso de máscara, álcool gel, medidas de higiene profiláticas e, acima de tudo, vacina sim! Para todas, todos e todxs. Com urgência! Esta é a esperança que, a despeito do caos sobre a terra, ainda me faz sorrir na iminência do dia 03 de julho: minha segunda dose da Coronavac.
Imagens da internet conforme os links.