terça-feira, 13 de novembro de 2012

Entre comunidades e favelas: as intencionalidades discursivas





Como a pauta da matéria de O Globo, de 11/11/2012, deslustra um dos bairros da Zona Oeste do Rio, penso naquilo que a mesma trata por “carência” nesta e em outras áreas. Se o que se pretende afirmar é um fato, ele se dá em função da inoperância do estado naquilo que lhe compete, apesar de todo o discurso que tenta esvaziar as suas responsabilidades, fazendo com que grande parte dos serviços básicos ou não existam ou funcionem muito mal. 
Diz O Globo, de 11/11/2012
“Carência de serviços públicos influi em voto na Zona Oeste
Na Zona Oeste, o voto está restrito a poucos candidatos. A região, segundo o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RJ), possui a maior área sob o domínio da milicia no Rio. Dos dez locais de votação com a maior diferença entre o primeiro e o segundo colocado, sete estão nessa área da cidade. O campeão de votos em uma única localidade é de Sepetiba, no extremo oeste do Rio. Em quatro dos cinco locais de votação do bairro, o candidato eleito Willian Coelho (PMDB) venceu com percentuais que variaram de 30% a 56% dos votos. Durante a campanha, Willian teve apoio maciço do deputado federal Pedro Paulo (PMDB), coordenador da campanha do prefeito Eduardo Paes.” (O Globo, 11/11/2012, p. 10)
Coreto construído em 1903

Fazer uma análise de dados estatísticos que recortam tão somente a política e a economia para explicar a diversidade de qualquer que seja a região, pós processo eleitoral é, no mínimo reducionista. Se não pensasse nas intencionalidades.

E as demais produções em Sepetiba e entorno? As lentes socioeconômicas pouco contribuem na amplitude das condições de compreensão das realizações cotidianas. Elas são inoperantes quando não dialogam com as diversas manifestações culturais e de toda a história da localidade além das aparências. E nisto percebo, também, um forte antagonismo.
Como pensar as ações de um Ecomuseu, em Sepetiba, que tem por marco doutrinal o direcionamento de suas ações ao patrimônio material e imaterial, dando suporte à recriação histórica das memórias e culturas local,  interagindo com todas as demais contribuições que não desprezam a visão total global/local blindando seus habitantes dos centralismos perversos, que levam às delimitações do “cada um no seu quadrado” já tão massificados pelo “eu só quero é ser feliz...”?
Temperos do bahiano, na feira de Sepetiba
Mesmo duvidando, às vezes, de meu ceticismo, entendo como inconsistente a responsabilização das igrejas locais e seu protagonismo no contingente expressivo de votos nos políticos citados, apesar de não me entender como religioso.
Lembro-me de que muitos daqueles que me entregaram material de propaganda, durante o período eleitoral, de “seus” candidatos, quando eu recusava dizendo que havia “fechado com ele” – com o “meu” candidato, declaravam, baixinho, sua intenção de voto, aliás, bem diferente do que a matéria jornalística apresenta, ingenuamente ou, o que é pior, desprezando a contribuição de autores voltados aos “meios e às mensagens”.
Comissão de Desenvolvimento 
Ecomuseu Sepetiba
Aqui, sim, enxergo brechas por onde se poderia avançar na busca pela construção de uma localidade onde a tranqüilidade permitida pelo distanciamento do centro, avance na construção de um cenário para o desenvolvimento nos quesitos necessários à cidadania plena e de direito, rejeitando a lógica dos centros privilegiados que insistem na distribuição de bens, serviços, cultura e informações.

Ao contrário, ao se fortalecer as diferenças locais e a manutenção dos laços universais em um mundo com suas fronteiras cada dia mais esgarçadas, ou, mantendo a metáfora, “diluídas”, caminha-se em direção a uma sociedade menos injusta.
Matérias com teor semelhante não têm como mencionar – tampouco, dimensionar - as resistências a este “olhar” generalizante sobre o que os agentes do poder, utilizando-se da mídia, persistem, caminhando à margem da Constituição.
Na crença de sua eterna invulnerabilidade e detentores de amplos poderes, esforçam-se em criar, no imaginário, estratégias que lhes garantirão, encastelados, sua permanência..
Entendendo existir tal correnteza, que arrasta um mar de opiniões, a mídia massiva constrói discursos deslocando significados através das palavras.
Pescaria ao entardecer 
na Praia de Sepetiba
Acordos entre os empresários, em apoio aos seus candidatos, estipulam as pautas, formatos, discursos entre as TVs, rádios e jornais, através dos editoriais.
Como a extinção das palavras precede à materialidade, um destes deslocamentos de significado é promovido pelo esforço na substituição compulsória de alguns vocábulos que, historicamente, têm nomeado as coisas.
O substantivo “favelas”, por exemplo, tacitamente aceito e incorporado por muito, pelo “sinônimo” comunidades, exige atenção, já que as palavras criam identidades!
Muito além do desamparo proposital, colado ao adjetivo “carente”, conforme a matéria, ele facilita a ação daqueles que pretendem se beneficiar, apostando em suas crenças na desinformação generalizada e na tal correnteza informacional. Esquecem-se da força da história, que, se sobrevive aos tsunamis, quanto mais às ações políticas.
Colônia de Pescadores Z15. Sede 
do Movimento Ecomuseu Sepetiba
Decoração do Bar Conexão, 
na Praça Oscar Rossini
Muito além das pretensões individuais, o bairro de Sepetiba, limítrofe entre Guaratiba e Santa Cruz, não bastasse o seu passado historicamente ligado à presença da Família Imperial, ao trânsito de mercadorias, à produção de bens e serviços, às fazendas e responsabilidades com o desenvolvimento da região e de todo o estado, aproveitando as intencionalidades do poder instituído, atualmente, sedia um ecomuseu, um dos poucos existentes em todo o Brasil

Arduamente organizado pela Bianca  Wild e pelo Bruno Cruz, companheiros incansáveis, à frente de uma Comissão de Desenvolvimento, da qual eu faço parte, junta-se, no Rio de Janeiro, aos demais existentes -  apenas três!. Sua visão antropológica, histórica e sociológica, fruto de vivências, estudos e pesquisas têm-se mostrado suficientes para sua capacitação na coordenação do Ecomuseu de Sepetiba.
Assim como a matriz, o Noph - Ecomuseu de Santa Cruz, dentre suas funções está a apropriação cultural da região pelos seus habitanes, assim como a patrimonialização do espaço vivido, afirmando a subjetividade e a singularidade da comunidade local, acrescentando a busca pela coesão social.
Talvez esse associativismo em regime de cooperação e colaboração, agindo em parceria com as escolas do entorno, e demais espaços de educação formais e não formais, possa dinamizar o surgimento de um ecomuseu pedagógico.
Seu Erasmo
Os planos de ação do Ecomuseu de Sepetiba não restringem às culturas locais, porém, interconectadas, através das redes, às demais realidades planetárias existentes, resultado e motivo das transformações sociais. E isto propicia um olhar “além das sombras embandeiradas que separam os quintais”, como cantou o Raul, além do que se pretende construir como realidade. Penso ser necessária esta amplavisão, para uma análise sobre liberdade associada à política, como pretendeu a matéria. Aspectos importantes da cultura e da história da região foram lançados na periferia do debate entre os entrevistados, como em uma correnteza de informações.


BARRETO, Raquel Goulart. O discurso da "inclusão". In: Discursos, tecnologias, educação. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009. p.39-51
BERINO, Aristóteles de Paula. Território. In: A economia política da diferença. São Paulo: Cortez Editora, 2007. p. 29-63.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
KOCH, Ingedore Villaça. Discurso e argumentação. In: Argumentação e linguagem. 8ª edição. São Paulo: Cortez Editora, 2009. p. 22-23
MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 6ª edição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,  2009.
OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Centro e periferia: a cidade como espaço educativo: processos de periferização e centralização cultural. In: A cidade como espaço educativo. Salto para o futuro, ano XVIII, boletim 03, abril de 2008: Secretaria de Educação a distância, MEC, 2008. p. 27-31.
SANTOS, Milton. A transição em marcha. In: Por uma outra globalização. 16ª edição. Rio de Janeiro: Editora Record. p. 141-174.






domingo, 4 de novembro de 2012

Impressões de vida.


Revista O Globo (4/11/2012, p. 30)
Conforme a reportagem do Globo de hoje (4/11/2012) "o acesso à tecnologia tem sido decisivo na afirmação da identidade das classes C, D e E, permintindo, como nunca, que documentem seu cotidiano e recontem suas histórias." (p. 1) afirmando que "hoje são centenas de cliques. Nunca se gerou tanto arquivo. A questão é: como isso está sendo armazenado." (Revista O Globo, p. 35). Penso na intencionalidade destas afirmações...
Revista O Globo (4/11/2012, p. 31)

Mas, como assim? o registro fotográfico documentando situações cotidianas, momentos em família é garantia de afirmação de identidade? Ora, para isto aqueles antigos álbuns de família, que já armazenaram muitas fotos, já desempenharam, e muito bem, esta dupla função! Penso que a questão esteja muito mais ligada à armazenagem, catalogação, registro e documentação que, propriamente, identidades. Nosso álbum era o "nosso álbum", que era passado geração após geração. No ciberespaço, quem dispuser deste riquíssimo acervo terá adquirido um enorme patrimônio, já que diz respeito à sentimentos e  narrativas fotográficas, que, realmente, vão "muito além de impressões digitais". São impressões de vida! 

Julio Roitberg, 4/11/2012

O GLOBO, 4/11/2012, ano LXXXVIII, nº 28.944 

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

A fuga do foco no fogo da festa: uma equação complicada esta de ser feliz dentro da escola.


Em um stand de alunos na feira cultural
- Onde vocês aprendem mais?
- Aqui ! (todos, imediatamente, apontaram para a 1ª maquete)
1ª maquete



1ª maquete

1ª maquete

 - E  onde vocês se sentem mais felizes?
Após um intervalo de alguns segundos...
- Aqui! (todos responderam, apontando para a 2ª maquete)

2ª maquete

2ª maquete


Logo após, chamo o coordenador pedagógico da escola a ver um dos trabalhos e mostro as maquetes.
Ele (satisfeito), se dirige aos estudantes e diz:
- Parabéns a vocês e à professora!
e continua:
- Realmente aqui (1ª) um ambiente organizado, limpo, com todos se respeitando, em silêncio e sentados, não se perde o foco e todos aproveitam bem melhor as explicações do professor.

NOTA: Registro fotográfico - com autorização - de maquete construída por estudantes do ensino fundamental  sobre o tema “Comportamento social nas práticas pedagógicas” proposto por uma professora do ensino fundamental, de escola particular, em 01/10/2012



terça-feira, 30 de outubro de 2012

Autorização e autonomia em meio às "caras de 'ué?!"



Creio que todos nós, professores, já nos encontramos diante de uma turma  cujos  alunos permaneceram completamente calados.
No meu caso, a cara de “ué?!”  me colocava em dúvida sobre,: 1) se não nem ao menos me escutaram; 2) se não entenderam nada do que falei ou  então 3), já sabiam de tudo, ou...
A estas inúmeras dúvidas  se acrescentaram  outras, a partir de tantas outras discussões, conversando sobre autorização entendida como a capacidade de nos libertarmos o suficiente para escrever, falar, enfim, expressar as ideias que vimos  construindo – e desconstruindo -   quando necessário em todo e qualquer lugar a qualquer momento.
Crescemos na dualidade entre duas “escolas”: a escola escola e a “escola da vida” e foi, exatamente esta que fez com que adquiríssimos a liberdade necessária para não ficar “com o dedo levantado na sala de aula”, aguardando que a professora nos “desse a palavra”.
Todos nós,  de alguma forma, já pegamos, em algum momento,  o nosso “pé de cabra”, a nossa picareta, a nossa “malvina” tão necessárias e necessários em determinados momentos, quando não nos cederam as  chaves, o código de acesso, a regra da etiqueta: “aguarde a sua vez para falar, isto é sinal de educação”, ou, então, “ouça primeiro, pra depois falar”.
Não que não existam procedimentos necessários para que todos possam aproveitar de uma conversa. O que digo aqui é que vejo como necessário um ambiente horizontalizado para que haja interação, intercriticidade, diálogo, lembrando a ideia contida no sufixo desta palavra: “ através”.
Palavras transpassando, o que me permite repensar a máxima de Paulo Freire: "A liberdade sem limite é tão negada quanto a liberdade asfixiada ou castrada" (p. 105)
Dentro ou fora das diversas salas de aula, horizontalizamos  freirianamente estes espaços de construção, no coletivo, transpassado por tantas narrativas, demonstrando nossa autorização e autonomia.
Creio que autorização, que prescinde da autonomia,  é a inversão da lógica do sistema explicador (Rancière), na medida em que  “ninguém é sujeito da autonomia de ninguém” (Freire, p. 107) e que  nos autorizamos e desenvolvemos nossa autonomia com o nosso amadurecimento, com todas as nossas experiências respeitosas da liberdade.
Talvez seja por isto que tanto nos incomoda a cara de “ué?” nos estudantes: pensando a lógica da dominação simbólica, pode ser que alguns deles ainda estejam esperando que alguém lhe dê a palavra... ou não.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 33ª ed. São Paulo: Paz e Terra. 1996.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 3ª Ed.: Belo Horizonte: Autêntica. 2011
Julio Roitberg, 30/10/2012

sábado, 27 de outubro de 2012

Narrativas na formação e histórias a contar.



Julio Roitberg (27/10/2012)

Tomando por princípio que formação é um contínuo desde o muito que possamos ter lembrança, desde que, todos os seres - fugindo das taxonomias racionalistas - iniciaram suas primeiras incursões em direção ao outro, nossas manifestações culturais auxiliam-nos na formação de nossas identidades, assim como em todas as representações sociais.
E, neste processo formativo, são elas que se consubstanciam pelos praticantes culturais em ato. Atos de fala, de ação, narrando nossas itinerâncias, nossas viagens, com os outros e  conosco mesmos.
Narrativas em imagens e tantas outras manifestações culturais é o que nos move, dentre tantas experiências formadoras e, pensando o lugar do professor no processo formativo, enquanto texto curricular singular,  entendo que, esta necessidade de procurar o outro, através das narrativas, expressam muito das idiossincrasias e, no meu caso, ao invés de caminhar linearmente, em uma forma, em um trilho, tal qual o flanêur apresentado por Macedo Soares (2010),  hipertrofiam-se pelos atalhos, vias viscinais, por outras rotas, de fuga, perseguindo outras lógicas, outras possibilidades, plurívocas, em busca da “formação caminhante e curiosa” (p. 146-148)
Esta necessidade de procurar o outro (alter), em minha “formação caminhante”, procura distanciar-se da conformação, ao construir-me em processos de hetero, auto, eco e todos em todos os demais sufixos a que se possa agregar este radical.
A viagem em direção ao outro fez com que iniciássemos nossa complementação, nossa integração, em arkhé, “o que expressa um sentido histórico e cultural como princípio fundador” (p. 249).  Ocorre que, nesta travessia, - Eco à procura de Narciso -, confundimos partes do outro em nossos próprios reflexos.
Assim iniciamos a depuração do que partilhamos, do que agregamos, do que multiplicamos nestes reencontros, quando não nos permitimos “achar feio o que não é espelho”, conforme a música, a qual recorro, a fim de, paradoxalmente,  devolver-me  à realidade. A expressão artística e os desejos não me permitem iludir nos reflexos discursivos racionalistas, na medida em que, para melhor ver/ouvir/sentir/escutar, enfim, mergulhar nos/dos/com os cotidianos, “é preciso correr riscos” (OLIVEIRA, 2007),  e, acima de tudo,
 “devolver a vida à ciência, porque a vida é assim: vagabundeia de forma incerta pela dinâmica da bioquímica da matéria, insiste na instabilidade do movimento, mesmo que caminhe inexoravelmente para a inércia, a harmonia e o equilíbrio que é a morte [e aconselha] Levantar da cadeira é o primeiro passo para sonharmos com possíveis horizontes de fuga. |Nômades, flaneurs, caminhantes, talvez sejam os atributos de um novo ser do conhecimento qu quer correr o risco do pensar complexo, que quer abrir os braços para o abraço (OLIVEIRA, 2003, p. 35)
O exercício do sentir o outro enquanto próximo, exercitando os meus afetos (e desafetos, também!) integra o meu processo de formação. Macedo Soares, discorrendo sobre estética e formatividade: formação, sensibilidade, felicidade, sofrimento e esperança (MACEDO SOARES, p. 127-135), reforça as características da formação como um fenômeno complexo, pois que fundante na construção do Ser, desembrutecendo-nos, apresentando a centralidade do desejo em nosso processo formativo. Para o autor, “em formação é preciso entender que a emoção coloca o sujeito em movimento e o impulsiona para a ação.” (p. 129), construindo suas realidades e sendo, por elas, construído.
“Se queremos compreender e trabalhar com essa realidade, prestemos atenção às narrativas na formação e suas histórias a contar. O discurso de uma razão pura e fria, pode ser muito mais jogo de poder e cinismo escamoteador do que outra coisa."
            O entendimento de que aprendemos, ensinamos, desaprendemos, pesquisamos e somos pesquisados pode garantir o estabelecimento de uma conduta ética no exercício docente, na medida em que, desta forma luta-se pela conquista e/ou manutenção de um estágio invejável de harmonia social.
            Estar aberto ao outro, não com uma postura paternalista, de marcação das diferenças, com o foco nas ausências, me permite o experienciar que, as histórias de vida que nós escutamos, nos cotidianos, que lemos, e “trabalhamos” com os autores, nos dão acesso a dimensões sensíveis, afetivas e imaginárias, tanto no que concerne às cores que são utilizadas, quanto a anotações de músicas que aparecem na trama racional da narrativa. A beleza da narrativa dá a sensação às vezes que ela fala dela mesma.
“O mundo dos afetos e o mundo das implicações, conscientes ou não, são complexidades que a formação não pode descartar, seja para evitar as costumeiras recaídas nas reduções racionalistas, seja para não mais virarmos as costas às dificuldades produzidas pela complexidade da condição humana.” (MACEDO SOARES, p. 100)
            E, em que consiste este papel  que nós, professores, representamos no processo formativo, enquanto um texto curricular singular? A resposta precisa passar pela construção de práticas coletivas que garanta a todos o exercício da liberdade, da autorização. E este construir, no encontro com o outro, em suas viagens, utilizando-me da escuta sensível das narrativas produzidas me permite o confronto com  as minhas convicções, verdades cristalizadas e valores adquiridos. Em uma atitude dialógica, horizontal, permito-me selecionar aquilo que importa para a minha formação enquanto professor que se pretende copartícipe dos processos emancipatórios, em busca de uma sociedade menos injusta.
Aproveitar os cotidianos para a heteroformação é uma oportunidade de me fazer crítico, refletindo sobre o que transpõe o gostar do outro (e da outra) , através das identificações, em direção ao conhecimento, algo que não deve ser formado, dado, transmitido por ninguém, a não ser por si próprio
Como Forrest Gump, convido a esta conversa dois autores que me permitem a continuação desta viagem, como no filme. Falo de Rancière e de Carlo Ginzburg. O primeiro, com O mestre ignorante; o segundo, com O queijo e os vermes.
Estes parceiros de viagem tem me ajudado bastante no exercício da escuta sensível, na busca dos indícios, das pistas, na medida em que me apresentam outros companheiros que, em princípio, nada contribuiriam para a construção dos conhecimentos legitimados pela Academia.
Rancière revelando o mito da desigualdade inventada pelos processos de escolarização, na França Republicana,  parte do princípio da existência de alguém que precisa de outro para a construção do conhecimento. Para o autor,  na “sociedade pedagogizada” (p. 128) é atribuído à escola uma distribuição igualitária do saber.
A “revelação” a que se acomete Jacotot, personagem histórico, da França às voltas com a Revolução Francesa, nos idos de 1818, recriado por Rancière,  explode na epifania representada pela “inversão da lógica do sistema explicador.” Paradoxalmente, apresentar o outro como incapaz, é  
“a ficção estruturante da concepção explicadora de mundo. É o explicador que tem necessidade do incapaz, e não o contrário, é ele que constitui o incapaz como tal. Explicar alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só. Antes de ser o ato do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um mundo dividido  em espíritos sábios e espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e bobos.” E isto se revela como o princípio do embrutecimento” (RANCIÈRE, p. 23-24)
Organizar, metododizar, compartilhar, enfim, pedagogizar o currículo praticado, sempre fez parte de uma escola que se pretendia única: um projeto de escola, pensado pela burguesia a, não só separar os continuadores do poder, como, também, aqueles que a eles serviriam.
Para isto, nada melhor do que o currículo chão de fábrica, afinal, a produção em série não comporta, como produto final, apenas máquinas, equipamentos, dispositivos. Do fordismo ao toyotismo, da produção em série à flexibilização, ela posibilita, também, modos de agir, ser e pensar.
Atento a estas questões, rejeitando a centralidade da formação em um “Taylor pedagogo” (MACEDO SOARES, 2010, p. 27), o autor adverte para que não confundamos ou reduzamos os processos formativos, relacionais, com o gerenciamento da formação e sua racionalidade, trazendo à discussão o aprender, também,  em níveis de sensibilidade para as diferenças,  para o exercício da solidariedade.
Em termos de um ideário de formação que se amplia para um perpesctiva social onde se pleiteia ao mesmo tempo a diferença e a construção do bem comum, todo esse processo formativo devirá acontecer como um processo mútuo, intercrítico, intercompreessivo e solidário. É o seu projeto político e ético. Neste sentido, querer aprender junto e viver junto, de forma dignamente compartilhada, é uma atitude a ser aprendida no processo de formação [...]” (MACEDO SOARES, 2010, p. 51)
É, exatamente esta sensibilidade que me permite compreender as diferenças  significativas entre os diversos saberes com os quais me encontro ao me deparar com o outro. Jamais pretendendo colocá-lo em uma forma, nem ao menos à que se encaixa “no meu número”, a fim de atender aos meus interesses.
Respeitá-lo vai além das regras do viver em sociedade: isto nos dá a medida de nossa socialização plena, da completude do ser social, ainda quando se trata do exercício do poder.
Respeitá-lo exige-me a compreensão do quanto eu preciso da diferença enquanto complementariedade, trazendo, para fechar a conversa (e abrir outras), a atualidade e mais do que suficiência dos achados de nosso maior pensador, lembrando que ninguém forma ninguém. E isto vai bem além da formação, dos atos de currículo, do currículo praticado. Sabedor de minhas responsabilidades na construção de uma outra sociedade, enquanto professor, a isto permaneço alerta. Busco não me permitir virar as costas e seguir adiante, com os projetos que elidem a cumplicidade, o companheirismo, a amizade. São os meus parceiros e parceiras que garantem a construção coletiva destas narrativas e histórias a contar as nossas tantas jornadas, viagens, intinerâncias.