Julio Roitberg (27/10/2012)
Tomando por princípio que formação é um contínuo desde o muito que
possamos ter lembrança, desde que, todos os seres - fugindo das taxonomias
racionalistas - iniciaram suas primeiras incursões em direção ao outro, nossas
manifestações culturais auxiliam-nos na formação de nossas identidades, assim
como em todas as representações sociais.
E, neste processo formativo, são elas que se consubstanciam pelos
praticantes culturais em ato. Atos de fala, de ação,
narrando nossas itinerâncias, nossas viagens, com os outros e conosco mesmos.
Narrativas em imagens e tantas
outras manifestações culturais é o que nos move, dentre tantas experiências
formadoras e, pensando o lugar do professor no processo formativo, enquanto texto curricular
singular, entendo que, esta necessidade
de procurar o outro, através das narrativas, expressam muito das
idiossincrasias e, no meu caso, ao invés de caminhar linearmente, em uma forma,
em um trilho, tal qual o flanêur
apresentado por Macedo Soares (2010),
hipertrofiam-se pelos atalhos, vias viscinais, por outras rotas, de
fuga, perseguindo outras lógicas, outras possibilidades, plurívocas, em busca
da “formação caminhante e curiosa” (p. 146-148)
Esta necessidade de
procurar o outro (alter), em minha “formação caminhante”, procura distanciar-se
da conformação, ao construir-me em processos de hetero, auto, eco e todos em
todos os demais sufixos a que se possa agregar este radical.
A viagem em direção ao
outro fez com que iniciássemos nossa complementação, nossa integração, em arkhé, “o que expressa um sentido
histórico e cultural como princípio fundador” (p. 249). Ocorre que, nesta travessia, - Eco à procura
de Narciso -, confundimos partes do outro em nossos próprios reflexos.
Assim iniciamos a
depuração do que partilhamos, do que agregamos, do que multiplicamos nestes
reencontros, quando não nos permitimos “achar feio o que não é espelho”,
conforme a música, a
qual recorro, a fim de, paradoxalmente,
devolver-me à realidade. A
expressão artística e os desejos não me permitem iludir nos reflexos
discursivos racionalistas, na medida em que, para melhor
ver/ouvir/sentir/escutar, enfim, mergulhar nos/dos/com os cotidianos, “é
preciso correr riscos” (OLIVEIRA, 2007),
e, acima de tudo,
“devolver
a vida à ciência, porque a vida é assim: vagabundeia de forma incerta pela
dinâmica da bioquímica da matéria, insiste na instabilidade do movimento, mesmo
que caminhe inexoravelmente para a inércia, a harmonia e o equilíbrio que é a
morte [e aconselha] Levantar da cadeira é o primeiro passo para sonharmos com
possíveis horizontes de fuga. |Nômades, flaneurs,
caminhantes, talvez sejam os atributos de um novo ser do conhecimento qu quer
correr o risco do pensar complexo, que quer abrir os braços para o abraço (OLIVEIRA,
2003, p. 35)
O exercício do sentir o
outro enquanto próximo, exercitando os meus afetos (e desafetos, também!)
integra o meu processo de formação. Macedo Soares, discorrendo sobre estética e
formatividade: formação, sensibilidade, felicidade, sofrimento e esperança (MACEDO
SOARES, p. 127-135), reforça as características da formação como um fenômeno
complexo, pois que fundante na construção do Ser, desembrutecendo-nos,
apresentando a centralidade do desejo em nosso processo formativo. Para o
autor, “em formação é preciso entender que a emoção coloca o sujeito em
movimento e o impulsiona para a ação.” (p. 129), construindo suas realidades e
sendo, por elas, construído.
“Se queremos compreender e trabalhar com essa
realidade, prestemos atenção às narrativas na formação e suas histórias a
contar. O discurso de uma razão pura e fria, pode ser muito mais jogo de poder
e cinismo escamoteador do que outra coisa."
O
entendimento de que aprendemos, ensinamos, desaprendemos, pesquisamos e somos
pesquisados pode garantir o estabelecimento de uma conduta ética no exercício
docente, na medida em que, desta forma luta-se pela conquista e/ou manutenção
de um estágio invejável de harmonia social.
Estar
aberto ao outro, não com uma postura paternalista, de marcação das diferenças,
com o foco nas ausências, me permite o experienciar que, as histórias de vida
que nós escutamos, nos cotidianos, que lemos, e “trabalhamos” com os autores,
nos dão acesso a dimensões sensíveis, afetivas e imaginárias, tanto no que
concerne às cores que são utilizadas, quanto a anotações de músicas que
aparecem na trama racional da narrativa. A beleza da narrativa dá a sensação às
vezes que ela fala dela mesma.
“O mundo dos afetos e o mundo das implicações,
conscientes ou não, são complexidades que a formação não pode descartar, seja
para evitar as costumeiras recaídas nas reduções racionalistas, seja para não
mais virarmos as costas às dificuldades produzidas pela complexidade da
condição humana.” (MACEDO SOARES, p. 100)
E,
em que consiste este papel que nós,
professores, representamos no processo formativo, enquanto um texto curricular
singular? A resposta precisa passar pela construção de práticas coletivas que
garanta a todos o exercício da liberdade, da autorização. E este construir, no
encontro com o outro, em suas viagens, utilizando-me da escuta sensível das
narrativas produzidas me permite o confronto com as minhas convicções, verdades cristalizadas
e valores adquiridos. Em uma atitude dialógica, horizontal, permito-me
selecionar aquilo que importa para a minha formação enquanto professor que se
pretende copartícipe dos processos emancipatórios, em busca de uma sociedade
menos injusta.
Aproveitar os
cotidianos para a heteroformação é uma oportunidade de me fazer crítico,
refletindo sobre o que transpõe o gostar do outro (e da outra) , através das
identificações, em direção ao conhecimento, algo que não deve ser formado,
dado, transmitido por ninguém, a não ser por si próprio
Como Forrest Gump,
convido a esta conversa dois autores que me permitem a continuação desta
viagem, como no filme. Falo de Rancière e de Carlo Ginzburg. O primeiro, com O
mestre ignorante; o segundo, com O queijo e os vermes.
Estes parceiros de
viagem tem me ajudado bastante no exercício da escuta sensível, na busca dos
indícios, das pistas, na medida em que me apresentam outros companheiros que,
em princípio, nada contribuiriam para a construção dos conhecimentos
legitimados pela Academia.
Rancière revelando o
mito da desigualdade inventada pelos processos de escolarização, na França
Republicana, parte do princípio da
existência de alguém que precisa de outro para a construção do conhecimento.
Para o autor, na “sociedade
pedagogizada” (p. 128) é atribuído à escola uma distribuição igualitária do
saber.
A “revelação” a que se
acomete Jacotot, personagem histórico, da França às voltas com a Revolução
Francesa, nos idos de 1818, recriado por Rancière, explode na epifania representada pela
“inversão da lógica do sistema explicador.” Paradoxalmente, apresentar o outro
como incapaz, é
“a ficção estruturante da concepção explicadora
de mundo. É o explicador que tem necessidade do incapaz, e não o contrário, é
ele que constitui o incapaz como tal. Explicar alguma coisa a alguém é, antes
de mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só. Antes de ser
o ato do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um mundo
dividido em espíritos sábios e espíritos
ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e
bobos.” E isto se revela como o princípio do embrutecimento” (RANCIÈRE, p.
23-24)
Organizar, metododizar,
compartilhar, enfim, pedagogizar o currículo praticado, sempre fez parte de uma
escola que se pretendia única: um projeto de escola, pensado pela burguesia a,
não só separar os continuadores do poder, como, também, aqueles que a eles
serviriam.
Para isto, nada melhor
do que o currículo chão de fábrica, afinal, a produção em série não comporta,
como produto final, apenas máquinas, equipamentos, dispositivos. Do fordismo ao
toyotismo, da produção em série à flexibilização, ela posibilita, também, modos
de agir, ser e pensar.
Atento a estas
questões, rejeitando a centralidade da formação em um “Taylor pedagogo” (MACEDO
SOARES, 2010, p. 27), o autor adverte para que não confundamos ou reduzamos os
processos formativos, relacionais, com o gerenciamento da formação e sua
racionalidade, trazendo à discussão o aprender, também, em níveis de sensibilidade para as
diferenças, para o exercício da
solidariedade.
Em termos de um ideário de formação que se amplia
para um perpesctiva social onde se pleiteia ao mesmo tempo a diferença e a construção do bem comum,
todo esse processo formativo devirá acontecer como um processo mútuo, intercrítico, intercompreessivo e solidário.
É o seu projeto político e ético. Neste sentido, querer aprender junto e viver
junto, de forma dignamente compartilhada, é uma atitude a ser aprendida no
processo de formação [...]” (MACEDO SOARES, 2010, p. 51)
É, exatamente esta
sensibilidade que me permite compreender as diferenças significativas entre os diversos saberes com
os quais me encontro ao me deparar com o outro. Jamais pretendendo colocá-lo em
uma forma, nem ao menos à que se encaixa “no meu número”, a fim de atender aos
meus interesses.
Respeitá-lo vai além
das regras do viver em sociedade: isto nos dá a medida de nossa socialização
plena, da completude do ser social, ainda quando se trata do exercício do
poder.
Respeitá-lo exige-me a compreensão do quanto eu preciso da diferença enquanto complementariedade, trazendo, para fechar a conversa (e abrir outras), a atualidade e mais do que suficiência dos achados de nosso maior pensador, lembrando que ninguém forma ninguém. E isto vai bem além da formação, dos atos de currículo, do currículo praticado. Sabedor de minhas responsabilidades na construção de uma outra sociedade, enquanto professor, a isto permaneço alerta. Busco não me permitir virar as costas e seguir adiante, com os projetos que elidem a cumplicidade, o companheirismo, a amizade. São os meus parceiros e parceiras que garantem a construção coletiva destas narrativas e histórias a contar as nossas tantas jornadas, viagens, intinerâncias.
Respeitá-lo exige-me a compreensão do quanto eu preciso da diferença enquanto complementariedade, trazendo, para fechar a conversa (e abrir outras), a atualidade e mais do que suficiência dos achados de nosso maior pensador, lembrando que ninguém forma ninguém. E isto vai bem além da formação, dos atos de currículo, do currículo praticado. Sabedor de minhas responsabilidades na construção de uma outra sociedade, enquanto professor, a isto permaneço alerta. Busco não me permitir virar as costas e seguir adiante, com os projetos que elidem a cumplicidade, o companheirismo, a amizade. São os meus parceiros e parceiras que garantem a construção coletiva destas narrativas e histórias a contar as nossas tantas jornadas, viagens, intinerâncias.
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