sábado, 20 de outubro de 2012

Quem matou o Max? Ou quem não pagou a conta? Julio Roitberg





Quem matou o Max?
Ou quem não pagou a conta?
Julio Roitberg, 20/10/2012

Não sei se me incluo na categoria dos noveleiros, daqueles que trocam tudo por uma boa novela, do mesmo modo que  desde garoto, me encantava pelas narrativas, pelos livros, pelas histórias em quadrinhos, pelos álbuns de figurinhas, pelos desenhos animados, pelas fotografias. Com o tempo, desenvolvi o hábito de procurar não perder nem o primeiro, tampouco o último capítulo de uma novela, assim como sair caçando figurinha mais difícil a completar uma página de meu álbum. Como bom carioca, nascido e criado nas classes populares. 
Mas, o que há para acontecer de pior no último capítulo de Avenida Brasil, novela da Rede Globo de televisão, de autoria de João Emanuel Carneiro? Tudo bem que há tempos escuto de pessoas inteligentes que novela aliena, deixa o povo anestesiado para a vida real, que é por isto que o país não vai pra frente e  que novela é coisa de gente que não tem coisa mais importante pra fazer e fica, ali na frente da TV, feito idiota, apenas consumindo, consumindo, consumindo.  Se pensar em alienação enquanto momento de extravasamento, do sonho, das licenças, elas sempre me foram permitidas: pelos livros, pelo cinema, através da leitura dos outdoors, das músicas, das mídias as mais diversas possíveis. 
Claro que a pedagogia da imagem, como me ensina o meu amigo, impera em produções da mídia massiva, principalmente,  a fixação das idéia (?!) das classes sociais, de que se pode ser muito mais feliz vivendo em situação de risco, de abandono por parte dos poderes públicos, distante de outros bens culturais, do cada um no seu quadrado. Afinal,  “eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci. E poder  me orgulhar. E ter a consciência que o pobre tem seu lugar”, como diz a canção de MC Cidinho e MC Doca. 
Entretanto, discussões bacanas sobre a relativização do bem e do mal, da inversão de papeis, da ética, do prazer e da estética, de consumo e produção cultural, não foram poucas em relação a esta novela. Assistir  Avenida Brasil, principalmente, nas últimas semanas,  no meu caso, representou um paradoxo, ao me trazer à realidade, fazendo com que eu  priorizasse o desperdício do tempo pras coisas inúteis - ainda que bem distante do ócio... Se todos que se encontram diante da TV permitem-se alienar, quantos pneus eu já não teria comprado? No mínimo, teria um quarto cheio deles. E isto pra não falar dos carros maravilhosos, das roupas, dos perfumes. Os itens de consumo em Avenida Brasil, claro, foram, também, de outra ordem: o consumo dos valores, dos gostos, dos hábitos. 
A construção de um cotidiano, cujas táticas dos praticantes revertem o discurso das ausências, da falta, da pobreza. Ou seja, da pretensa subalternidade do agir, fazer e pensar de uma cultura em detrimento de uma outra que se pretende hegemônica, face ao gosto popular. O trabalho exaustivo do escritor com as identidades, com as representações sociais, com os hábitos e consumo dos moradores do Divino, “pertinho de Madureira." - como diz Arlindo Cruz, cantor e compositor - "É só saltar e sair sambando da Estação”. Tudo bem que decantar os subúrbios cariocas não seja nenhuma novidade, ainda mais diante da impossibilidade de João Emanuel Carneiro, em fugir às regras elementares da literatura posto que já tão exaustivamente contados nos romances de Lima Barreto, autênticos tratados antropológicos de um Rio de Janeiro. Mais carioca?! Impossível. 
O que desponta na produção artística é a qualidade e a originalidade na mistura dos ingredientes. E sem o menor pudor em comparar uma novela de televisão aos (hoje) “clássicos” da literatura, penso que, em Avenida Brasil, entraram em campo, pra bater bola os personagens de João Emanuel Carneiro e de Lima Barreto, principalmente com o conto O Homem que sabia Javanês (1911) e os romances Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915) e Clara dos Anjos (1948, póstumo), sem critério algum para eleger estes em detrimento do restante de sua obra. As narrativas urbanas  e a cartografia carioca realizadas etnograficamente por um morador no subúrbio do Rio de Janeiro, entre 1902 e 1922, revelam um escritor além de seu tempo, antecipando traços a compor os textos modernos. 
Como não aproximar  as cenas e os cenários cariocas representados pela prosa, ao final da tarde, com as cadeiras na calçada, a cervejinha regando, nos relatos do “Homem que Sabia Javanês”,  o papo gostoso na mesa de um botequim. O vendedor ambulante a fazer o pregão inflamado na porta da loja, o Darkson, na pele do ator José Loretto, mergulhando na atmosfera dos mercados árabes do camelódromo. O cantor de modinhas em “Triste Fim...”, que pretendia ser reconhecido em outros ambientes que não o seu, também,  em Avenida Brasil, ganhou proporções na dinâmica das escaladas sociais: Suellen (Ísis Valverde), de João Emanuel Carneiro e Ricardo Coração dos Outros, de Lima Barreto. Ela, a Maria chuteira da novela, personagem que se densifica em meio a um relacinamento com dois companheiros, jogadores de futebol do Divino F.C. Ele, personagem de Lima Barreto, em Triste Fim de Policarpo Quaresma, assim como o autor, às voltas com a situação do não reconhecimento artístico. 
Mas, guardando as  devidas distâncias temporais, culturais e sociológicas que separam aquela produção das de hoje, na novela, intensificaram-se os diálogos com outros moradores, que circulam em vários mundos, em um mesmo (?!)  Rio. Entre a Zona Sul e o Subúrbio. Mas, afinal, o que poderia acontecer de pior naquele último capítulo? Impregnado pelas campanhas da emissora em fazer daquele momento um momento agradável diante da telinha, de preferência junto aos amigos, me joguei no sofá da sala, próximo a tudo o que me permitiria alienar-me, só pra descobrir quem matou o Max, mas para, mais uma vez, me deixar iludir com as punições e as premiações devidas. 
Alegrar-me com quem iria casar com quem  e quem engravidaria e teria filhos. Sobre as situações matrimoniais, Cadinho com suas três mulheres representou um ganho a mais nas discussões sobre a cultura dos relacionamentos abertos, isto sem trauma nenhum. Situações traumáticas não foram poucas na novela:  não só a do Adauto (Juliano Cazarré),  que ganha o apelido de Chupetinha, na cena final, após a cura de um trauma representada pelo bullying sofrido enquanto criança, revelando o seu segredo, assim como a paixão entre as protagonistas Nina (Débora Falabela) e Carminha (Adriana Esteves), movendo toda a trama novelesca entre os diversos congelamentos ao final de cada capítulo.  O abraço entre duas personagens, já ocorrido durante a novela, e que se repete ao final, trasparece a identidade comum entre as personagens, como se fora apenas uma, duas ou várias faces de uma mesma moeda, colorida e em branco e preto durante os diversos “congelmentos”, garantindo um clímax, nada a dever aos folhetins alencarianos. 
Pensando em qualidade textual, não há como não elogiar os nexos de coesão e coerência mantidos por toda a trama, assim como os recursos audiovisuais, compondo a narrativa do escritor. Sim, porque muitos daqueles que criticam o hábito de assistir novelas se esquecem que por trás delas há um escritor e meu gosto pelas narrativas não me permite deixar de pensar nisso, principalmente, quando estou gastando o meu tempo diante de uma novela. 
É assim: a novela é boa pelo mesmo motivo que há excelentes e medíocres times de futebol, isto pra não ser pedante e afirmar ser  o meu como o melhor, recorrendo ao escritor e dramaturgo tricolor, Nelson Rodrigues: “Eu vos digo que o melhor time é o Fluminense. E podem me dizer que os fatos provam o contrário, que eu vos repondo: pior para os fatos”.  O que se revela, então? Quem tem dinheiro bastante, paga os melhores profissionais de TV assim como compra os melhores jogadores. E ponto. Os melhores atores, iluminação, sonosplatia, roteiro, tudo impecável. 
Agora, o que fez com que este último capítulo adquirisse uma cor diferente, entre o cinza e o branco e o "cordelismo encantado" do lixão, dentre os tantos finais a que assisti foi, que, a TV ficou congelada, quer dizer preta, quer dizer... Como assim falar luz no último capítulo de Avenida Brasil?! Sim, a Light conseguiu bater o recorde de audiência... em reclamações. http://www.noticiasbr.com.br/imagens/2012/10/novela-avenida-brasil-adauto-faz-golaco-e-divino-sobe-para-primeira-divisao1.jpg





O clímax tão sonhado pelos escritores. Bateu a Globo, com certeza. Foi mais falada que toda a obra de José de Alencar e Lima Barreto, juntos. Mas, tudo bem. Hoje vai repetir. Mas, cara pálida, imagina a situação: o Adauto vai bater o pênalti fatídico, após ter vencido o trauma,  da chupeta, faz o gesto com dedo na cabeça, se prepara, corre pra bola e...

Escuridão total.

Minha casa, a rua,o bairro.

Imediatamente, não podia deixar de pensar: isto é porque moro na periferia! Mas, a novela toda não veio fazendo um elogio a esta vida bucólica que permeia tanto os subúrbios cariocas como toda a Zona Oeste e Baixada? E isto sem pensar nos estereótipos construídos às custas do imaginário suburbano. Teria sido este o silêncio da incompreensão do Adauto diante daquele pênalti perdido no passado? Da torcida, perplexa do Divino F.C. que dependia daquele gol pra se ver na Primeira Divisão? Do silêncio e perplexidade, do “maracanaço”, no Estádio do Maracanã, misto de desolação e incompreensão, a fatídica final, da Copa do Mundo FIFA,  entre Brasil e Uruguai, em 16 de julho de 1950. O empate, por si só, já garantiria o título ao Brasil, devido à excelente campanha. 
Adauto suplanta a si mesmo. Mas quis o Destino diferente. Muito além do atacante Ghiggios, autor do gol, aos 79 minutos, finzinho da partida, e dos cornos com que o autor decorara a cabeleira do Adauto. A conta de luz está paga. Adauto tem a sua redenção, assim como todos os personagens desta novela. Max encarna o personagem trágico cuja morte conclui a catarse necessária. Quanto à Light, deixa pra lá, porque a luz já voltou. Exatamente por isto é que termino este texto com o pouco de bateria de meu notebook,  além de que o dia já começou e pede a realidade... da poesia.

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