quinta-feira, 16 de março de 2023

O Circuito das estações outono

A melhor corrida e a necessária reserva de gás 

Conseguir inscrição numa das corridas do calendário pela Appai, virou uma proeza espetacular, ainda mais se tratar de provas acima dos 10km. 

Sabe aquela iguaria quando chega no empório todo mundo compra e depois - que acabou - fala com o amigo?! Tipo goiabada cascão com coco queimado ou pinhão das serras gaúchas.

Foi assim com o WTR Praias Selvagens e com o Circuito das estações outono, nas três distâncias - 5, 10 e 21 km - e, claro que minha preferência sempre foi pelas provas de longa distância.

Mas, se não tem tu, vai tu mesmo e, finalmente,  alguém desistiu e consegui uma de 5 km!

São muitos os motivos que nos fazem desistir e, dentre eles, um é por pura estratégia. É que, eu não deixo de acompanhar  no site, insistentemente,  o vaivém de inscrições encerradas e vagas disponíveis, até aparecer uma prova que atenda às minhas expectativas.

Pode ter sido um aniversário, uma dor de dente,  uma prova de concurso público ou exame de habilitação. Uma festa de aniversário, um casamento ou um batizado.

 O importante é que houve uma única desistência, exatamente na prova que dificilmente eu escolheria, se não fosse a última azeitona. 

Como eu disse antes, nunca me vi disputando uma prova de velocidade e esta tem todas as características. São apenas 5 km, pra quem pretende 21km ou maratonas, como há três anos venho me preparando 10 °/• inspiração 90 °/• suor.

Mas, o copo está meio cheio e dá pra fazer uma limonada: seria minha primeira prova em que poderia me testar num campo nada confortável: a intensidade, além de trazer pro José uma medalha arrojada que nem ela, que vai me ajudar explicar o movimento da terra e do sol durante as estações do ano, além de tentar descobrir quem mordeu nossa medalha. 

Existiriam outras vantagens, claro. Depois de receber a medalha, numa prova curta, há  algumas outras satisfações impagáveis como as filas bem menores pra massagem, pro lanche, pra cerveja, pro sanitário químico.

Acordei, então, lá pelas 6 hs, comi banana e fui cuidar das coisas da casa, enquanto passava o café. Meu filho acordou cedo e tratei de cortar a grama e terminar as urgências do dia, já que teria que sair por volta do meio dia. 

Como minhas filhas não responderam minha mensagem sobre dormir na casa delas, combinei com meu amigo, o Joel, pus a mesa e servi o café pra família. 

Falei com meu filho que iria correr e só iria voltar no outro dia. Apertando minha perna,  como protesto, ele disse que eu iria demorar, mas me pediu mandar áudio e trazer uma surpresa. 

Enquanto Ana, minha esposa, cuidava do almoço, joguei bola com José e, assim que ela serviu o nosso prato, comecei a dar o seu almoço.

Assim que cheguei no ponto, o ônibus pra Santa Cruz estava saindo,  não consegui pegar e - detestavelmente! - tive que entrar numa van. Por sorte, assim que chegou no ponto final, acessei a plataforma de embarque da Supervia e consegui embarcar no trem,  no exato momento em que as portas estavam se fechando.

Não tenho como deixar de pensar como é punk a vida de corredor proletário morador da periferia rs

Da Central do Brasil, peguei o metrô e saltei no Largo da Carioca onde comprei uma "doleira" pexinchando com o camelô. Antes de pegar o meu número de peito e o chip, passei na Tenis Race pra comprar a latinha de leite em pó pra doação condicionada pela inscrição na corrida . 

Estranho como o mercado aproveita qualquer oportunidade pra tirar alguma vantagem, ainda que travestida de boas ações. Afinal, algum corredor sempre se esquece de comprar a latinha rs

Mas, se eu tivesse com dinheiro sobrando bem que teria comprado o boneco do Sonic pro José e umas pulseiras hippies pra Ana Paula da banca de jornal perto do prédio da Appai...

Não consegui encontrar minhas filhas e voltei pra casa do brother onde fui mais uma vez recebido efusivamente por ele e pelos seus pets .

Descansei da viagem e fui fritar uns ovos, pra servir com arroz e frango, só que o gás acabou e o botijão reserva estava vazio. Joel não conseguiu um delivery por telefone  então, precisamos procurar quem  nos servisse. 

Ainda chovia pouco quando saímos pra comprar gás, e precisamos andar um bom pedaço pelo Santo Cristo até achar um vendedor que pudesse levar um botijão pra gente.

O gás sempre acaba nas situações mais inusitadas. Joel precisa bastante de alguém que fique com ele além,  claro  de gás, e foi com esta certeza que pensei nas minhas possibilidades tanto em dar uma forcinha pra ele quanto refleti no significado da corrida do dia seguinte. Seria uma corrida pra usar todo o meu gás, mas com alguma estratégia que, até o momento, não havia definido dentre as possibilidades.

Também pensei no gás do meu amigo, com grandes dificuldades em se levantar, caminhar e fiquei triste e preocupado tanto com as ruas que ele atravessa, o carro que ele ainda dirige e a escada sem corrimão que ele sobe todo dia. E toda noite.

O Parkinson debilita muito e fragiliza bastante o corpo. São visíveis as restrições de movimentos no meu amigo de infância, assim como a pilha de caixas de medicamentos sobre a mesa. Fiquei triste e nem um pouco solidário com a resignação de quem havia sido um excelente jogador de futsal. Quais as estratégias pra enfrentar aquela realidade?

Não podia - nem deveria! - abrir mão do ritual da cerveja em sua boa companhia, nem da comidinha gostosa, ainda mais que, com o botijão cheio, pude terminar de fritar os ovos. 

Conversamos sobre nossa infância, vi um navio ser partido por uma onda gigante na Discovery, o ataque mortal de um crocodilo e o brother foi dormir, cedo como de costume.

Terminei de organizar minhas coisas de corrida,  mandei outro vídeo pro pessoal aqui de casa e também fui descansar. Chovia gostoso e dormi bem.

Mesmo com a possibilidade de chegar no Aterro do Flamengo, caminhando por cerca de meia hora, acordei três horas antes, preparei um lanche, enchi minha garrafa com água e saí bem antes de casa. Fui um dos primeiros corredores a chegar.


Há muito não fazia aquele trajeto a pé, ainda mais, amanhecendo o domingo. As pessoas dormindo enroladas em cobertores habitam grande parte do trajeto das ruas do Riachuelo e Mem de Sá, onde, em vão, tentei localizar o prédio antigo, da metade do século passado, onde, aos catorze anos, tive meu primeiro emprego de carteira assinada, como office-boy.

Seria aquele um dos motivos porque eu desisti da Corrida Rio Antigo? O meu Rio Antigo não comportava tantas mazelas sociais, apesar existirem. Uma vela para Dario, pra mim, sempre foi muito mais que um romance. 

Carioca raiz, o frio, a fome, a falta de abrigo sempre estiveram em meus trajetos pelo meu Rio de Janeiro  nestes meus 66 anos. Corredores de rua temos uma visão privilegiada da realidade. Em cores.

Tanto quanto as políticas públicas, as ações sociais são extremamente necessárias assim  como o envolvimento da sociedade civil no enfrentamento das desigualdades sociais.

Tenho muito orgulho da minha associação, a Appai, pelas doações, campanhas e ações solidárias, mas, sei, também das limitações de tudo isto, pois  o corte de classe social cada vez mais aumenta o fosso entre os pobres os multi milionários.

Lembro de nossa vida nos anos 60 e da morte dos mendigos nas ruas, principalmente no
inverno, quando ainda fazia muito frio naquele outro mundo. E quem tem fome tem pressa. Admiro demais a Appai por sua política social, afinal, se cuidar faz bem conforme uma campanha da associação. Cuidar do outro, melhor ainda.

Professoras e professores do ensino médio, apesar dos péssimos salários e  das condições aviltantes de trabalho, no atual quadro de emprego depois do desastre do último governo, somos  privilegiados assim como todo o staff de apoio que dá suporte aos atletas, organizam, e fazem acontecer:  médicas do SAMU, bombeiras socorristas, massagista, colegas da educação física, profissionais de instalação de som, eletricistas já haviam chegado para produzir o evento. Todos e todas com seus empregos  fazendo, no mínimo, três refeições por dia.

Tratei de ir à tenda medir pressão, batimento cardíaco e e passei protetor solar e repelente a nossa disposição. A auxiliar de enfermagem me falou do programa de avaliação cardio respiratória a que temos direito pela Appai, com equipe multidisciplinar e anotou meu celular pro agendamento.

Deixei meus pertences no guarda volumes. Peguei água e banana,  e fiz contato com uma moça que retira kits e entrega no dia da corrida:  mais uma oportunidade de obter uma renda extra e facilitar a vida de corredores como eu.

O DJ começou a puxar o alongamento e logo já estava num frenético ritmo pro aquecimento e chamada pra concentração. O drone, também acelerado, zunia sobre as nossas cabeças.

Desta vez, saí na frente dos pipocas me juntando ao pelotão Quênia. Como todos os demais também saíram juntos, empurrado pelo enorme volume de corredores velozes.  tive que correr os primeiros metros pela grama. E acho que isto me garantiu o bom resultado.


Já no meu segundo quilômetro havia alcançado a minha melhor marca e, justamente quando consigo convencer minhas pernas que elas tem que correr! No quarto, dei nova havia acelerada até chegar perto do 5 km, quando desacelerei ao cruzar a linha de chegada.


Somente precisei baixar a aceleração no pequeno aclive da chegada, quando estive próximo de alguns raros corredores aparentemente idosos na minha frente. Os pouco que avistei, não foi difícil ultrapassar e isto sem pegar água em nenhum posto. Me senti bem: humorado, hidratado e bem alimentado.

Do alto da passarela,  o fotógrafo gritou Appai e alguns corredores acenaram pra registrar o momento e, logo a seguir, o pórtico de chegada a nossa frente convidava ao sprint final. 

Abri a reserva e  tirei o gás pra chegar bem. Cruzei o faixa, e registrei aquele excelente resultado. Incomparavelmente melhor que a última corrida. Não bastara a minha performance, claro que tudo que antecedeu a prova, toda organização, padrão Appai do "benefício corridas e caminhadas" fizera a diferença.

Entre as diversas baias de controle para entrega das medalhas, escolhi exatamente da  moça  com camisa do Flamengo, e,- claro! - fiz questão de filmar.  Só pra zoar: "olha só quem vai entregar a medalha pra este tricolor!", disse pra ela que me sorriu resignada com a derrota na final do campeonato.

Como de costume, voltei ao posto médico e o enfermeiro me alertou que o resultado daria alterações porque eu acabara de concluir o percurso, ainda sobre o estresse da corrida.

Peguei meus pertences no guarda volumes, fui ao sanitário químico, ao dispersor de água, e retirei meu lanche, vendo se não havia a bolinha do sorteio de brindes dentro da embalagem. Também não havia sido sorteado noutro sorteio. Não costumo ser mesmo...

Sentei na murada da orla da marina pra descansar, fazer uma filmagem daquela bela paisagem pra mostrar a medalha "mordida "pro meu filho, os barcos e um aviãozinho decolando do aeroporto perto, o Santos Dumont.


Sentei na grama, entre muitos corredores pra lanchar e me hidratar. Acho o açaí com granola;  a água de coco e o whey protein ótimos repositores no pós treino.

Costumo esperar um bom tempo pra comer o sanduíche integral com peito de frango milho, trazendo as outras coisinhas, tipo barra de cereal, gel pra viagem de volta.


Antes de ir pra fila da massagem, que se agigantara enquanto eu fazia outras coisas, encontrei meu colega, o Vitor Hugo, e, de novo, como noutras corridas, também encontrei o Jonhy e o Regis. 

Conversamos sobre a corrida e ele me falou que, infelizmente, corridas organizadas em outros lugares como o circuito, por exemplo, não pontuam por idade. Caso contrário, com o meu resultado, eu faria pódium.


A fisioterapeuta, desta vez, além de tocar nos pontos nevrálgicos, me promoveu uma das melhores sessões de massagem depois das corridas. Em alguns momentos, pareceu dar choque em certos pontos, e isto sem nenhum aparelho: sua pressão na sola do pé, panturrilha e coxas me fizerem, como reflexo, literalmente, pular da maca. 


Depois das maravilhosas mãos de Lívia, a massagista, o jovem rapaz de 66 anos, com a medalha no peito, com serotonina de reserva, voltou pra casa. No caminho, ainda comi um pastel antes de pegar o  ônibus.

Revendo o meu treinamento depois daquela corrida, acrescentei a natação na minha planilha, para o fortalecimento muscular e cárdio duas vezes por semana,  na turma de funcionários do meu trabalho,  enquanto mantenho o treino de manutenção de volume preservando o que acumulei e evitando a fadiga. 

O outono, estação intimista, que segue o circuito solar, me convida refletir no quanto o pensar a corrida, durante a corrida, continua sendo uma boa estratégia pra melhorar minha resistência e aumentar o volume.

Registrar minhas percepções sobre uma corrida de velocidade, as estratégias e resultado de treinamentos específicos para não perder volume e intensidade partindo deste meu melhor desempenho me  possibilita mais uma oportunidade de autoconhecimento

E isto não acontece pensando e escutando somente o meu corpo, mas refletindo as relações do meu organismo que se integra,  inicialmente,  à natureza, depois à família,  amigos,   colegas,  enfim, a comunidade, para a valorização das relações, nesta jornada, correndo aos 60. 

Assim como o meu corpo responde à atenção que lhe dou, respondendo aos nossos cuidados e atenção, nosso pé de jaboticaba começou a dar flores e, pela primeira vez, uma pequena fruta.

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